Boaventura de Sousa Santos

Nova Orleães, Iraque

septiembre de 2005

Nos últimos quatro anos assisti nos EUA a dois acontecimentos gravíssimos, causadores de muita morte e destruição, um deles provocado por mão humana — o ataque às Torres Gémeas —o outro, natural —o furacão Katrina, que acaba de destruir Nova Orleães. Para além da dimensão das tragédias, estes dois acontecimentos não parecem ter nada em comum. Mas as aparências iludem. Em primeiro lugar, ambos revelam, cada um a seu modo, as enormes fragilidades da segurança interna do pais mais rico e poderoso do mundo. Ao contrário do que se tem dito, ambos os acontecimentos foram previstos, e previstos com detalhe. Os relatórios secretos da CIA vinham a pontando para a iminência de um ataque dramático a Nova Iorque por parte da Al Qaeda, usando a aviação civil. Do mesmo modo, são muitos os relatórios de várias agências de protecção civil que nos últimos anos chamaram a atenção para a necessidade de reforçar os diques de Nova Orleães, evitar a erosão dos pântanos e preparar acções de evacuação em  grande escala. Em ambos os casos, o governo não levou a sério os alertas. No caso de Nova Orleães, a imprevidência foi particularmente grave, uma vez que, ainda no ano passado, o governo reduziu em cerca de 50% o orçamento do Corpo de Engenheiros encarregado das infra-estruturas de protecção da cidade.

Em segundo lugar, as respostas do governo a estas catástrofes revelam alguns traços comuns, igualmente inquietantes para os cidadãos americanos. A resposta aos atentados em Nova Iorque foi a invasão do Afeganistão, seguida da do Iraque. A eficácia (para nem falar da justificação jurídico-política) destas medidas está hoje tragicamente posta em causa. A maioria dos cidadãos norte-americanos não se sente hoje mais seguro e pensa que o presidente lhes mentiu quando justificou a invasão com a existência de armas de destruição maciça e a iminência do seu uso contra os EUA. Esta convicção vai certamente alastrar ainda mais depois da patética confissão de Colin Powell de que foi ludibriado (e ludibriou o mundo) quando mostrou na ONU armas que não existiam, considerando agora esse discurso uma mancha negra na sua carreira.

No que respeita à tragédia de Nova Orleães, os norte-americanos estão atónitos e indignados com a incompetência e ineficácia da resposta do governo. Como foi possível que milhares de pessoas tenham esperado entre três e sete dias para serem evacuadas ou receberem água potável e alimentos, razão por que muitos terão morrido desnecessariamente? As comparações com tragédias no estrangeiro são inevitáveis. Quando o tsunami assolou a Ásia, O socorro chegou em 24 horas. Quando, no ano passado, Cuba foi varrida por um violento furacão, o governo evacuou mais de um milhão de pessoas sem uma única perda de vidas. E, para muitos, o fantasma do Iraque e da luta contra o terrorismo volta à superfície. O Wall Street Journal, conservador, interroga-se: como é possível que uma divisão da força aérea estacionada próximo de Nova Orleães, treinada e preparada para chegar a qualquer parte do mundo em 18 horas, tenha levado vários dias para chegar à cidade? Como é possível que, no país com o exército tecnologicamente mais avançado, as polícias das diferentes localidades usem sistemas de transmissão incompatíveis e não haja pilhas de substituição quando a energia eléctrica falha? O mesmo jornal, na sua edição de 9 de Setembro, noticia que começou já a corrida ao ouro dos contratos milionários para a reconstrução de Nova Orleães, e, para surpresa dos ingenuos, as empresas já contratadas pelo governo são as mesmas que foram contratadas para reconstruir . . . o Iraque. É  o mercado a impor a sua lei, alimentando-se da desgraca dos cidadãos, com a mesma lógica individualista e cega com que as autoridades federais ordenaram a evacuacão da cidade sem se darem conta que 100.000 pessoas não tinham carro nem lugar para onde ir.

O modelo de sociedade que vigora nos EUA e que a diplomacia  e as forcas armadas norteamericanas têm vindo a impor no mundo, com o apoio zeloso do Banco Mundial e do Fundo Monetario Internacional, está hoje mais do que nunca desacreditado. O relatório da ONU sobre a desigualdade no mundo, que acaba de sair, denuncia com inusitada veemência factos que os políticos e governos conservadores de todo mundo preferem não saber: no país mais rico do mundo não há um sistema nacional de saúde e quarenta milhões de cidadãos não têm qualquer seguro de saúde; a mortalidade infantil tem vindo a aumentar desde 2000 e é hoje igual à da Malásia; os negros de Washington DC têm uma mortalidade infantil mais alta que os habitantes do estado indiano de Kerala. A tragédia de Nova Orleães revela que neste modelo de sociedade o Estado está cada vez menos disponível para garantir o bem-estar e segurança dos cidadãos. Quando os atingidos são sobretudo os pobres e negros, como aconteceu neste caso, essa indisponibilidade transforma-se em repugnante indiferença. Perante estes factos, a facilidade com que as nossas elites políticas se deixam seduzir por este modelo de sociedade e de estado não pode ser atribuivel à ignorância. É produto de má fé e de corrupcão moral e política.